Barcelona City of Gaudi
1932. A Espanha então estava coberta por uma escória, os seus mendigos. Eles iam de aldeia em aldeia, na Andaluzia porque é quente, na Catalunha porque é rica, mas o país inteiro nos era favorável. Fui um piolho pois com a consciência de sê-lo. Em Barcelona, frequentávamos principalmente a calle Medidía e a calle Carmen. Dormíamos às vezes seis numa cama sem lençóis e logo de madrugada íamos mendigar nos mercados. Deixávamos em bando o Barrio Chino e no Parallelo nos separávamos carregando cestos, pois as donas de casa nos davam mais facilmente um alho-poró ou um nabo do que uma moeda. Ao meio-dia, voltávamos e com a colheita fazíamos a nossa sopa. São os costume da ralé que vou descrever. Em Barcelona, vi esses casais de homens em que o mais apaixonado dizia para o outro. - Hoje de manhã eu carrego o cesto. Ele apanhava o cesto e saía. Um dia Salvador arrancou suavemente das minhas mãos o cesto e me disse. - Vou mendigar para você. Nevava. Ele saiu na rua gelada, coberto com um paletó rasgado, em farrapos, os bolsos estavam rasgados e caíam, uma camisa suja e rígida. O rosto dele era pobre e infeliz, sonso, pálido e imundo, pois não ousávamos nos lavar de tanto que fazia frio. Ao meio-dia mais ou menos ele voltou com legumes e um pouco de banha. Aqui indico desde já uma dessas dores terríveis, pois irei provocá-las apesar do perigo, que me revelaram a beleza. Um imenso e fraternal amor inchou o meu corpo e me levou a seguir Salvador. Tendo saído um pouco depois dele do hotel, eu o via de longe tentando comover as mulheres. Já havendo mendigado para outros, ou mesmo para mim, eu conhecia a fórmula. Ela mistura religião cristã à caridade. Confunde o pobre com Deus. É uma emanação tão humilde do coração que acredito que empreste um perfume de violeta ao bafo leve e direto do mendigo que a pronuncia. Na Espanha inteira dizia-se então. - Por Dios. Mesmo sem ouvi-lo, podia imaginar Salvador a murmurá-la diante de todas as vendas, a todas as donas de casa. Eu o vigiava como o cafetão a sua puta, mas com que ternura no coração. Assim a Espanha e a minha vida de mendigo me terão feito conhecer os faustos da abjeção, pois éra preciso muito orgulho, isto é, amor, para embelezar esses personagens imundos e desprezados. Precisei de muito talento. Ele me veio aos poucos. Se me é impossível descrever para vocês o seu mecanismo, pelo menos posso dizer que lentamente me obriguei a considerar essa vida miserável como uma necessidade procurada. Nunca tentei fazer dela nada além do que era, não tentei enfeitá-la, mascará-la, ao contrário, eu quis afirma-la em sua mais exata sordidez, e os sinais mais sórdidos se tornaram para mim sinais de grandeza.
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Diário de um ladrão Jean Genet p. 18.
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