As idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados pseudocientíficos da Idade Média. Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal, infância e puerilidade, juventude e adoloscência, velhice e senilidade, cada uma dessas palavras desígnando um período diferente da vida. Desde então, adotamos algumas dessas para designar noções abstratas como puerilidade ou senilidade, mas estes sentidos não estavam contidos nas primeiras acepções. De fato, tratava-se originalmente de uma terminologia erudita, que com o tempo se tornou familiar. As idades, idades da vida ou idades do homem correspondiam no espírito de nossos ancestrais a noções positivas, tão conhecidas, tão repetidas e tão usuais, que passaram do domínio da ciência ao da experiência comum. Hoje em dia não temos mais idéia da importância da noção de idade nas antigas representações domundo. A idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporâneos. Pertencia a um sistema de descrição e de explicação física que remontava aos filósofos do século VI. a.C., que fora revivido pelos compiladores medievais nos escritos do Império Bizantino, e que ainda inspirava os primeiros livros impresos de vulgarização científica no século XVI. Não tencionamos determinar aqui sua formulação exata e seu lugar na história das ciências. Importa-nos apenas perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar, seus conceitos haviam passado para os hábitos mentais, e o que ela representava na vida quotidiana. Compreenderemos melhor o problema examinando a edição de 1556 Le Grand Propriétaire de toutes choses. Tratava-se de uma compilação latina do século XIII, que retornava todos os dados dos escrtitos do Império Bizantino. Considerou-se oportuno traduzi-la para o francês e dar-lhe, através da impressão, uma maior difusão. Essa ciência antigo-medieval era portanto, em meados do século XVI, objeto de vulgarização. Le Grand Propriétaire de toutes choses é uma enciclopédia de todos os conhecimentos profanos e sacros, uma espécie de Grand-Larrouse, mas que teria uma concepção não-análitica e traduziria a unidade essencial da natureza e de Deus. Uma física, uma metafísica, uma história natural, uma fisiologia e uma anatomia humanas, um tratado de medicina e de higiene, uma astronomia e ao mesmo tempo uma teologia. Vinte livros tratam de Deus, dos anjos, dos elementos, do homem e do seu corpo, das doenças, do céu, do tempo, da matéria, do ar, do fogo, dos passáros etc. O último é consagrado aos números e às medidas. Havia também nesses livros algumas receitas práticas. Uma idéia geral emanava da obra, idéia erudita que logo se tornou extremamente popular, a idéia da unidade fundamental da natureza, da solidariedade existente entre todos os fenômenos da natureza, que não se separam das manifestações sobrenaturais. A idéias de que não havia oposição entre natural e o sobrenatural pertencia ao mesmo tempo às crenças populares herdadas do paganismo, e a uma ciência tanto física quanto teológica. Eu diria que essa concepção rigorosa da unidade da natureza deve ser considerada responável pelo atraso do deesenvolvimento científico, muito mais do que a autoridade da Tradição, dos Antigos ou da Escritura. Nós só agimos sobre um elemento da natureza quando admitimos que ele é suficientemente isolável. A partir de um certo grau de solidariedade entre os fenômenos, tal como postula o Le Grand Propriétarie, não é mais possível inervir sem provocar reaçõe em cadeia, sem destruir a ordem do mundo, nenhuma das categorias do cosmo dispõe de uma autonomia suficiente, e nada pode ser feito contra o determinismo universal. O conhecimento da natureza limita-se então ao estudo das relações que comandam os fenômenos através de uma mesma causualidade, exceto através da magia ou do milagre. Uma mesma lei rigorosa rege ao mesmo tempo o movimento dos planetas, o ciclo vegetativo das estações, as relações entre os elementos, o corpo humano e seus humores, e o destino do homem, assim, a astrologia permite conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal. Anda em meados do século XVII, a prática da astrologia era bastante difundida para que Molière, esse espírito cético, a tomasse por alvo de suas caçoadas em Les Amants Magnifiques.
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A correspondência dos números apareceia então como uma das chaves dessa solidariedade profunda, o simbolismo dos números era familiar, encontrava-se ao mesmo tempo nas especulações religiosas, nas descrições de física, de história natural, e nas práticas mágicas. Por exemplo, havia uma correspondência entre o número dos elementos, o dos temperamentos do homem e das estações, o número 4. Para nós é difícil imaginar essa concepção formidável de um mundo maciço, do qual se perceberiam apenas algumas correspondências. A ciência havia permitido formular as correspondências e definir as categorias que elas ligavam. Mas essas correspondências, com o passar dos séculos, tinham deslizado do domínio da ciência para o mito popular. Essas concepções nascidas na Jônia do século VI com o tempo haviam sido adotadas pela mentalidade comum, e as pessoas representavam o mundo dessa forma. As categorias da ciência antigo-medieval se haviam tornando familiares, os elementos, os temperamentos, os planetas e seu sentido astrológico, e o simbolismo dos números. É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parece tão oca traduzia noções que na época eram científicas, e correspondia também a um sentimento popular e comum da vida. Aqui também esbarramos em grandes dificuldades de interpretação, pois hoje em dia não possuímos mais esse sentimento da vida, consideramos a vida com um fenômeno biológico, como uma situação na sociedade, sim, mas não mais que isso. Entretanto, dizemos é a vida para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa convicção de que existe fora do biológico e do socifológico, alguma coisa que não tem nome, mas que nos comove, que procuramos nas notícias corriqueiras dos jornais, ou sobre a qual podemos dizer isto tem vida. A vida se torna então um drama, que nos tira do tédio do quaotidiano. Para o homem de outrora, ao contrário, a vida era continuidade inevitável, cíclica, às vezes humorística ou melancólica das idades, uma continuidde inscrita na ordem geral e abstrata das coisas, mais do que na experiência real, pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade.
História Social da Criança e da Família Philippe Ariès Editora LTC p. 4.
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