Os debates feministas contemporâneos sobre os significados do conceito de gênero levam repetidamente a uma certa sensação de problema, como se sua indeterminação pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo. Mas problema talvez não precise ter uma valência tão negativa. No discurso vigente na minha infância, criar problema era precisamente o que não se devia fazer, pois isso traria problemas para nós. A rebeldia e sua repressão paraciam ser aprendidas nos mesmos termos, fenômeno que deu lugar a meu primeiro discernimento crítico da artimanha sutil do poder. A lei dominante ameaçava com problemas, ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los. Com o passar do tempo, outras ambiguidades alcançaram o cenário crítico. Observei que os problemas algumas vezes exprimiam, de maneira eufemística, algum misterioso problemas fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do feminismo. Li Beauvoir, que explicava que ser mulher nos termos de uma cultura masculinista é ser um a fonte de mistério e de incognoscibilidade para os homens, o que apareceu confirmar-se de algum modo quando li Satre, para quem todo desejo, problematicamente presumido como heterosexual e masculino, era definido como problema. Para esse sujeito masculino do desejo problema tornou-se escândalo com a intrusão repentina, a intervenção não antecipada, de um objeto feminino que devolvia inexplicavelmente o olhar, revertida a mirada, e contestava o lugar e autoridade da posição masculina. A dependência radiacal do sujeito masculino diante do Outro feminino expôs repentinamente o caráter ilusório de sua autonomia. Contudo, essa reviravolta dialética do que uma permuta entre sujeitos ou uma relação de inversão constante entre um sujeito e um Outro. Na verdade, o poder parecia operar na própria produção dessa estrutura binária em que se pensa o conceito de gênero. Perguntei-me então, que configuração de poder constrói o sujeito e o Outro, essa relação binária entre homens e mulheres, e a estabilidade interna desses termos? Que restrição estaria operando aqui? Seriam esses termos tão problemáticos apenas na medida em que se conformam a uma matriz heterossexual de conceituração do gênero e do desejo? O que acontece ao sujetio e à estabilidade das categorias de gênero quando o regime epistemológico da presunção da heterossexualidade é desmarcarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas catergorias ostensivamente ontológicas? Mas como questionar um sistema epistemológico/ontológico? Qual a melhor maneira de problematizar as categorias de gênero que sustentam a hierarquia dos gêneros e a heterossexualidade compunsória? Considere o fardo dos problemas de mulher, essa configuração histórica de uma indisposição feminina sem nome, que mal disfarça a noção de que ser mulher é uma indisposição natural.
Hairspray Official Video 2007
Por mais séria que seja a medicalização dos corpos das mulheres, o termo também é risível, e rir de categorias sérias é indispensável para o feminismo. Sem dúvida, o femininismo continua a exigir formas próprias de seriedade. Problemas femininos é também o título do filme de John Waters estrelado por Divine, que é herói/heroína de Hairspray. Éramos todos jovens, cuja personificação de mulheres sugere implicitamente que o gênero é uma espécie de imitação persistente, que passa como real. A performance dela/dele desestabiliza as próprias distinções entre natural e artificial, profundidade e superfície, interno e externo, por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre gênero. Seria a drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece? Ser mulher constituiria um fato natural, ou uma performance cultural, ou seria a naturalidade constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interiror das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as práticas de gênero de Divine nos limites das culturas gay e lésbica tematizam frequentemente o natural em contextos de paródia que destacam a contrução performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da indentidade, identidade binária de sexo, gênero e corpo, podem ser apresentadas como produções a criar o efeito do natural, original e inevitável?
Explicar as categorias fundacionais do sexo, gênero e desejo coo efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação crítica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de genealogia. A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver, em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de intituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. A tarefa dessa investigação é centrar-se, e descentrar-se, nessas intituições definidoras, o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. A genealogia toma como foco o gênero e a análise relacional por este sugerida justamente porque o feminino já não parece mais uma noção estável, sendo o seu signicado tão problemático e errático quanto o significado de mulher, e também porque ambos os temos ganham esse significado problemático apenas como termos relacionais. Além disso, não é mais certo que a teoria feminista deva tentar resolver as questões da identidade primária para dar continuidade à tarefa política. Em vez disso, devermos nos perguntar, que possibilidades políticas são consequência de uma crítica radical das categorias de identidade? Que formas novas de política surgem quando a noção de identidade como base comum já não restringe o discurso sobre políticas feministas? E até que ponto o esforço para localizar uma identidade comum como fundamento para uma política feminista impede uma investigação radical sobre as construções e as normas políticas da própria identiade?
Judith Butler is an American philosopher
Problemas de gênero feminismo e subersão da identidade Judith Butler p.7.
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