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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Comics



Um problema atual para os educadores: Histórias em Quadrinhos

A preocupação constante com problemas e crises morais de nossa época, o complexo de culpa em massa de um mundo que não consegue encontrar justificativa perante as novas gerações, que deve criar e orientar, para duas guerras de proporções monstruosas em apenas meio século, tomam por vezes aspectos de masoquismo, pois não é possível deixar de notar , aqui e ali, certo orgulho e prazer em proclamar que nunca houve no mundo período tão caótico como este em que vivemos, ou que jamais foram tão grandes os desajustamentos psicológicos e sociais. Creio que esta convicção é não só falsa como também pretensiosa. Mas nada mais humano do que julgarmos os nossos males maiores e mais importantes que os dos outros. Se o tanque tornou-se impotente perante a bomba atômica, não menos impotente tornou-se o cavaleiro vestido em cota de malha perante a pólvora, e, certamente, a mudança do centro político da terra de Londre-Paris-Berlim para Washington-Moscou é menos chocante do que a mudança do centro do Universo da terra para o sol. Tomando uma atitude objetiva, portanto, somos forçados a dominar o nosso orgulho de geração sacrificada e compreender que os males que nos afligem não são mais nem menos do que novas variações sobre um mesmo tema, isto é, manifestações contemporâneas e locais de problemas universais e eternos.



Queen Flash Official Trailer 1980

Na questão da educação das novas gerações, têm sido trazidas à luz, como eixo de várias polêmicas, as chamadas histórias em quadrinhos - comics - que tiveram sua primeira grande popularidade nos Estados Unidos, e cujos grandes heróis são Superman, Flashgordon, a Polícia Montada do Canadá, Dick Traicy, X-9 e mais não sei quantos outros, endeusados por milhares de fãs. Todos eles são chamados de fenômenos típicos do século XX. Nada mais falso, todos estes heróis não passam de cavaleiros andantes ou da Távola-redonda, superficialmente modernizados pelos métodos da produção em massa. Se não vejamos, há certos elementos básicos na estrutura do romance da cavalaria, a absoluta fidelidade e submissão do cavaleiro ao seu amor, o código de cavalaria e as provações ou aventuras pelas quais tem de passar o cavaleiros para mostrar-se digno de seu senhor feudal e de sua amiga. Aliados a essas características básicas, há outros apectos determinantes, tais como a religião, o elemento sobrenatural que se manifesta na forma de mágicos, dragões de tendências maquiavélicas etc., e um cenário variado que permanece, em espírito, sempre o mesmo, apesar de mudar de castelo, de reino em reino, como toponímia farta e específica, que mais acentua a irrealidade do ambiente. Os romances mais antigos eram, portanto, relativamente curtos, contendo apenas o número suficientes de aventuras para que ficasse provado o valor do cavaleiro e atingisse ele o seu objetivo, religioso ou amoroso. Com a passagem do tempo, entretanto, foi-se deturpando a forma dos romances porque o que atraía o público não eram as vitudes do cavaleiro, não raro enfadonho de tão perfeito mas as aventuras, os torneios, os duelos, os mágicos, os dragões enfim, todos os elementos representantes do mal que, por exigirem ação por parte do herói, o tornavam momentaneamente humano, e ao mesmo tempo eram delineados com grande cuidado, pois quanto mais difícil a tarefa, quanto mais horrendo o monstro a ser combatido, logicamente, o poder e a glória do cavaleiro. Transformaram-se assim os romances em coleções intermináveis de aventuras, que apenas em forma, e não mais em espírito, mantinham-se vinculados às suas origens de lenda céltica ou germânicas. Outro não é o caso das histórias em quadrinhos - comics. Os nossos heróis de hoje em dia são da mesma fidelidade inabalável às suas amadas. Temos agora em lugar da busca do Graal e do código de cavalaria, a busca da paz e da democracia e o código do gentleman.



Batman Return of the Caped Crusaders Official Trailer 2016

Se há casos em que o glorificado é o mal e não o bem, esses são positivamente as exceções, e também já decadentes de um campo já explorado e exausto; a mesma coisa aconteceu na Idade-Média, em que encontramos até casos de um mesmo cavaleiro transformar-se e corromper-se com a passagem do tempo e o uso constante dos mesmos personagens por toda espécie de autlaw e intérpretes. Não nos esqueçamos de Robin Hood, que não pertence ao cilo arturiano mas é herói do mesmo gênero, era um outlaw, e nem por isso deixou de ser endeusado; e hoje em dia, com alguns séculos entre nós e ele, é considerado herói da mais pura água. 

Mafalda

São quase desconhecidos, nas verdadeiras histórias em quadrinhos - comics - os casos em que não seja respeitado o famoso slogan o crime não compensa. Os dragões têm se tornado sem dúvida, mais mecanizados e politicamente mais vermelhos, mas continuam tão funcionais quanto os antigos no seu objetivo final de provar o valor dos heróis. 


Wood & Stock: Sexo, Óregano e Ro'roll Oficial Vídeo

Se tanto heróis como bandidos usam hoje armas automáticas e até mesmo atômicas, em lugar de românticos arcos e flechas, foi o mundo real quem as criou, e usou antes do mundo da ficção, e não vice-versa. Se houve modificações, temos que adimitir que a moral do século XX é mais rígida, pois enquanto que hoje em dia Superman e companhia são mantidos indefinidamente num estado de namoro crônico, casto e com nítidas tendências para o endeusamento, o adultério era parte integrante do código de amor cortês, que regia toda a engrenagem feudal dos romances medievais. 


The Amazin Spider-Man Official Trailer 2014

Encontramos hoje o mesmo ambiente ireal, onde uma cidade pode se chamar Nova York mas não ter realmente ligação alguma com a Nova York que conhecemos, porque afinal ainda nos resta um pouco de discernimento para saber que na ilha de Manhattan ainda não há gênios do mal capazes de transmitir, por meio do rádio, o corpo humano de um ponto para o outro da terra, permitindo assim a criminosos provar que, um segundo após cometer um crime em Chicago, uma quadrilha inteira se encontrava no Cairo, digamos. Não há dúvida que há muita gente que acredita na existência desses gênios, mas também não há dúvida que muita gente acreditava na existência dos mágicos que se transformavam em dragões, bruxas vermelhas que tomavam a forma de uma linda princesa etc. 


Astérix et Obélix Contre César Trailer

Esses grupos crédulos são exatamente os visados pelos autores dos romances de cavalaria e das histórias em quadrinhos - comics, e é nesse ponto que reside a semelhança básica dessas duas manifestãções literárias. Tanto os ciclos medievais da Tavola-redonda, do Graal etc., como o Superman e o Capitão Marvel são obras dirigidas não ao intelecto mas aos sentidos. Se na Idade-Média, esses romances vivera, durante dezenas e mesmo centenas de anos, como tradição puramente oral e Chrétien de Troyes, Sir Thomas Malory e outros fixaram apenas a fase final dos romances, é porque se dirigiam a platéias pouco cultas, ou melhor dizendo, pouco instruídas e na sua grande maioria analfabetas, mas por isso mesmo treinadíssima em receber instruções pelo ouvido. Já hoje em dia, graças a Gutemberg, não temos nós esse treino de ouvido, e portanto em lugar da palavra usa-se o approach visual para um tipo de literatura que se dirige a grupos pouco cultos ou de hábitos preguiçosos intelectualmente. 

Mangá

Basicamente o fenômeno é o mesmo, e tanto é o mesmo que não encontramos em nenhuma dessas histórias, seja do século XII ou XX personagens individualizados. São todos tipos sem características pessoais. Os heróis são todos bons, puros, justiceiros, a esperança dos infelizes e o horror dos malfeitores, os bandidos são todos totalmente maus, injustos e uniformemente derrotados pelo herói. E nem ao menos podemos dizer que fomos nós, do século XX, os primeiros a ter a idéia de usar o esquema dos romances medievais, outra coisa não foram os folhetins, os romances de capa e espada, e assim através dos séculos. O necessário é evitar as falsas histórias em quadrinhos, comics, as que são totalmente desvirtuadas da sua origem, ou aquelas que se infiltram no meio das outras de fundo realmente fiel ao espírito primitivo das histórias de aventuras, que tradicionalmente têm servido como guia de virtudes morais a um cem números de gerações. Não é meu intuito defender as histórias em quadrinhos - comics, como obras de grande mérito. Desejo apenas apresentar a idéias de que não são elas as causadoras per se das infelicidades do mundo. Averdade é que, se encontramos hoje, mentes pervertidas que admiram mais o bandido que o mocinho, o mesmo tem acontecido em todas as idades. Da mesma maneira que, na história da humanidade, mentes pervertidas têm preferido os maus líderes.

Macunaíma o herói sem nenhum caráter 1969 as Grande Otelo

Na sua forma fundamental, entretanto, todos os romances de aventuras tendem a ser moralizantes, porque apresentam sistematicamente a vitória do bem sobre o mal e a tendência natural do ouvinte ou leitor, é, por vaidade, identificar-se com o herói, seja ele de Camelot, Penha Pobre, Chicago, Nova York, ou planeta Mongo. 

Barbara Heliodora O Jornal Rio de Janeiro, 11/7/1954. 

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