Londres, século XIX.
Nevoeiro intenso. Um oficial do rei volta para casa. Ele anda pelas ruas de Kingston. São 7 horas da noite. Jane, sua mulher, o espera em casa. Ela está preocupada, porque Andrew, oficial distinto, praticante de equitação clássica e acrobática, não costuma se atrasar. Digamos que Andrew é tão pontual que um observador imparcial diria que ele chega a ser ligeiramente maníaco. Outro observador menos imparcial, teria dito que ele e um chato de galocha. - Estou angustiada - diz Jane. - Andrew está atrasado 7 minutos. No oitavo minuto, Andrew chega, se desculpa, pede a Jane que o perdoe, promete que aquilo nunca mais acontecerá e diz que tamanho atraso está à altura do ocorrido. O general que comanda a região militar de Londres o pôs no olho da rua. Foi por ciúme, o ciúme terrível que o general nutria pela simples presença de Andrew, por causa de sua maestria em lidar com o cavalo. Essa é a explicação para essa decisão injusta. Jane pergunta. - Você toma uma xícara de chá? - Não! Um uísque. - Deus do céu! Jane toma seu chá em pequenos goles, como uma encantadora dama inglesa de boa estirpe. Um leve sorriso pudico desenha-se nos seus lábios carnudos, sensuais, gulosos. Andrew manda para baixo uns belos tragos do uísque escocês que ele encomendara diretamente da destilaria de Dumbarton, pela qual tem especial apreço. Jane diz. - Você gostaria de comer um pedaço de carne com purê? Eu preparei seguindo à risca a receita de sua mãe, aquela que ela nos deu com tanto carinho quando passamos o último fim de semana em Ramsgate. Não estou com fome, de verdade. - Bom, eu vou comer um pouquinho e depois vou me recolher. Disse Jane. Andrew, homem de tradição britânica, não responde. Ele se retira para o escritório, que mais parece um museu equestre. Quadros e gravuras de cavalos em várias posições, marcha, trote, galope, empinado, em exibição. Espalhados por todos os lugares veem-se esporas inglesas, francesas, espanholas, um par vindo da Dinamarca, onde Andrew ganhou o Grand Prix, chicotes, cinzeiros em foram de cavalo. Se um estrangeiro entrasse no escritório de Andrew sem se dar conta do amor que ele tem por cavalos, precisaria consultar um oftalmologista. Andrew senta-se em sua poltrona inglesa, muito inglesa, de mogno vermelho e começa a pensar. Às 3 horas da manhã ele procura Jane, que o está esperando. Ela está lendo uma revista da qual é assinante. Flores e Jardins.
- Olá diz Jane. - Querida, vamos comprar um circo. Vou mostrar ao público como se adestra um cavalo. - Andrew, você é um gênio. Ele diz. - Vamos fazer amor. Naquela noite, Jane e Andrew fizeram amor como nunca haviam feito, inventando beijos e posições acrobáticas, perigosas e divertidas. De manhãzinha, Jane, cansada e feliz, pensou. Tudo isso só pode ser um bom sinal. Depois de dormirem o o sono daquele que, durante a madrugada toda, deram ao amor muito mais do que ele costuma pedir. No dia seguinte, Jane vai em busca de um local para o novo projeto. Encontra vários. Andrew vai visita-los. Eles se concentram num velho piquete bem situado e confortável, que acabam comprando. Refazem as partes de gesso, instalam amplas cadeiras de madeira, que Jane forra com almofadas laranja. E agora, Música maestro! Para cuidar da higiene e da alimentação, embelezamento dos cavalos, Andrew contrata dois caras da região de Hawick. Ambos se conhecem desde pequenos. Um é alto e magro, o outro, baixo e gordo. Dois perfeitos idiotas, simpáticos, alegres companheiros, trabalham duro. Um dia a tarde o baixinho, Jim, chega ao circo antes do amigo. Ele entra na grande sala ao lado do picadeiro e vai ajudar a organizar os acessórios para o espetáculo e o figurino. Está profundamente entediado. Ele admira e cobiça a indumentária de Joe, como uma criança que aprecia a roupa dos pais. Uma inveja irresistível toma conta da sua alma. Ele se veste com as roupas do amigo. Jim, feliz da vida com sua calça larga toda amarrotada nas pernas, sapatos enormes, um paletó que engoliu seus braços e um chapéu caindo no nariz, nem percebe que Joe está chegando. Automaticamente, Joe se prepara para trocar de roupa. O espetáculo já vai começar. Quando Joe só de cueca comprida procura seu traje, nada. Ele olha em volta. Do outro lado da sala, Jim tira um sarro dele, cantando. - Peguei seu figurino, lá, lá, lá, lá, lá. Peguei seu figurino. Joe corre a trás dele. Jim está assustado. Foge. Joe corre no encalço do companheiro. Ameaça Jim rogando-lhe todas as pragas. Jim põe sebo nas canelas. Tomado de pânico, com seu figurino enorme, ele abre uma porta. Cabum! Jim entra no picadeiro quando Andrew está realizando uma complicada manobra com os cavalos. Jim está apavorado, e estanca. O público morre de rir. As gargalhadas dobram quando Joe entra, segundos depois, com seu cuecão. Joe percebeu que há algo errado. O público não se contém. Os dois imbecis deixam o picadeiro ovacionados. Após o espetáculo, Joe e Jim estão preparados para ser demitidos, postos no olho da rua, com direito a humilhação e um pé na bunda bem dado. Qual não foi sua surpresa, porém, ao ouvir Andrew dizer. A entrada de vocês foi um sucesso. Amanhã vão fazê-la de novo, na mesma hora, exatamente igual, e depois de amanhã também. Assim nasceram dois grandes clows. Naquela noite, Jane e Andrew fizeram mais e mais amor, para comemorar o nascimento artístico de dois imbecis.
Cirque du Solei Varekai Claudio Carneiro
Nascidos por acaso, os palhaços surgiram como uma mosca na sopa. Eles são irmãos de leite da tarte tatin e da penicilina. Por eles ninguém esperava. Foram um acidente de percurso.
Philippe Gaulier O atormentado pg. 174.
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