Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submentemos com naturalidade. Assim que nossas crianças começam a falar, ensinamos-lhes seu nome, o nome de seus pais e sua idade. Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho, ao ser perguntado sobre sua idade, responde corretamente que tem dois anos e meio. De fato, sentimos que é importante que Paulinho não erre, que seria dele se esquecesse sua idade? Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura, algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido. Mas em nossas civilizações técnicas, como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento, se a cada viagem temos de escrevê-la na ficha de polícia do hotel, se a cada candidatura, a cada requerimento, a cada formulário a ser preenchido, e Deus sabe quatos há e quantos haverá no futuro, é sempre preciso recordá-la. Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N. da turma x.
Quando arranjar seu primeiro emprego, junto com sua carteira de trabalho, receberá um número de inscrição que passará a acompanhar seu nome. Ao mesmo tempo, e até mesmo mais do que Paulo N, ele será um número, que começará por seu sexo, seu ano e mês de nascimento. Um dia chegará em que todos os cidadões terão seu número de registro. Está é a meta dos serviços de identidade. Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome. Este, com o tempo, poderia muito bem não desaparecer, mas ficar reservado à vida paticular, enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos, o substituiria para o uso civil. Na idade Média, o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa, e foi necessário completá-lo por um sobrenome de família, muitas vezes um nome de lugar. Agora, tornou-se conveniente acrescentar uma nova precisão, de caráter numérico, a idade. O nome pertence ao mundo da fantasia, enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição. A idade, quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas, é produto de um outro mundo, o da exatidão e do número. Hoje, nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos.
Entretanto, existem documentos que nos comprometem seriamente, que nós mesmos redigimos, mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento. De gêneros bastante diferentes, esses documentos podem ser títulos de comércio, letras de câmbio ou cheques, ou ainda testamentos. Todos eles, porém foram inventados em épocas muito remotas, antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes. A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I. para que fosse respeitada, foi preciso que essa medida, já prescrita pela autoridade dos concílios, fosse aceita pelos costumes, que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata. Acredita-se que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil. A importância pessoal da noção de idade deve ter-se firmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos, começando pelas camadas mais instruídas da sociedade, ou seja, no século XVI, aquelas camadas que passavam pelos colégios.
História Social da Criança e da Família pg. 12.
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