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sábado, 24 de novembro de 2018

A água e a navegação têm realmente esse papel


Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior de tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais abertas das estradas. Solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabem quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo parentesco imaginário que se pode traçar ao longo de toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que da noite dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo menos é certa, a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu. Já sob o disfarce do louco, Tristão, outrora, tinha-se deixado jogar por marinheiros nas costas da Cornualha. E quando se apresenta no castelo do Rei Marcos ninguém o reconhece, ninguém sabe de onde vem. Mas seus propósitos são muito estranhos, familiares e longínquos, conhece demasiado os segredos do notório para não ser de um outro mundo bem próximo. Não vem da terra sólida, com suas sólidas cidades, mas sim da inquietude incessante do mar, desses caminhos desconhecidos que escondem tantos estranhos saberes, dessa planície fantástica, avesso do mundo. Isolda é a primeira a saber que esse louco pe filho do mar, e que marinheiros insolentes o jogaram ali, signo da desgraça. - Malditos sejam os marinheiros que trouxeram este louco! Por que não o jogaram ao mar?  (Tristan et Iseult, ed. Bossuat p. 219). E várias vezes no decorrer dos tempos o mesmo tema reaparece, entre os místicos do secúlo XV ele se tornou o motivo da alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos, no campo estéril das preocupações e da ignorância entre os falsos reflexos do saber, no meio do desatino do mundo, barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o sopro de Deus a leve ao porto. Ao final do século XVI, De Lancre vê no mar a origem da vocação demoníaca de todo um povo. O sulco incerto dos navios, a confiança apenas nos astros, os segredos transmitidos, o afastamento das mulheres, a imagem enfim dessa grande planície perturabada fazem com que o homem perca a fé em Deus bem como todas as ligações sólidas com a pátria, ele se entrega assim ao Diabo e ao oceano de suas manhas ( De LANCRE, De L'inconstance des mauvais anges, Paris, 1612). Na era clássica, explica-se de bom grado a melancolia inglesa pela influência do clima marinho, o frio, a umidade, a instabilidade do tempo, todas essas finas gotículas de água que penetram os canais e as fibras do corpo humano e lhe fazem perder a firmeza, predispõem à loucura (G. CHEYNE, The English Malady, Londres, 1773). Finalmente, deixando de lado toda uma imensa literatura que iria de Ofélia à Lorelei, citemos apenas as grandes análises meio antropológicas de Heirnroth, que fazerm da loucura como que a manifestação no homem de um elemento obscuro e aquático, sombria desordem, caos (Necessário acrescentar que o lunatismo não é estranho a esse tema. A lua, cuja influência sobre a loucura foi admitida durante séculos, é o mais aquático dos astros. O parentesco da loucura com o sol e o fogo surgiu bem mais tarde Nerval, Nietzsche, Artaud). Mas se a navegação dos loucos se liga, na imaginação ocidental, a tantos motivos imemoriais, por que tão bruscamente, por volta do século XV, esta súbita formulação do tema, na literatura e na iconografia? Por que vemos surgir de repente a silhueta da Nau dos Loucos e sua tripulação insana invadir as paisagens mais familiares? Por que, da velha aliança entre água e a loucura, nasceu um dia, nesse dia, essa barca? É que ela simboliza toda uma inquietude, soerguida subitamente no horizonte da cultura européia, por volta do fim da Idade Média. A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em sua ambiguidade. Ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens. 

Michel Foucault História da Loucura Editora Perspectiva p. 20. 

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